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Legends of Zangor #03


Capítulo 02 - Inspetor Golden

As montarias de Aldus e do guarda romperam pelas ruas de Theyley em direção ao Palacete Wolfengar.

O inspetor da Guarda Real vivia em uma casa próxima às Montanhas do Fim do Mundo, limites da cidade a oeste, e que, segundo afirmavam os geógrafos planistas, consistia no último marco de terra ocidental de Zangor. Aos pés da cordilheira, habitavam as famílias migradas a Theyley, organizando-se em bairros de acordo com suas riquezas. Por ser um funcionário do poder real, Aldus Golden morava numa das melhores localidades da zona oeste da capital, bem diferente de Chap, que tinha sua casa instalada ao pé da cordilheira, sob o constante risco de deslizamento.

A cavalgada por Theyley era intensa. A população aglomerara-se nas grandes ruas abertas décadas atrás pelo rei Kavendish Olgnar, a fim de permitir maior fluxo de cavalos, essenciais em uma cidade de largas proporções. Ainda assim, não era fácil atravessar os transeuntes. Aparentemente, a notícia da morte de Adyl Wolfengar se espalhara seguindo os passos do guarda mensageiro, tirando as pessoas de suas casas naquela noite outrora quieta. Para cortar caminho, os dois seguiram caminho pelo Distrito do Sacerdócio, uma parte sagrada da capital do reino de Zardoia, onde templos foram erguidos a onze divindades de Zangor. Próximo aos templos, era proibido o tráfego a cavalo, com exceção aos funcionários da guarda, que comumente usavam aquele atalho, rompendo a quietude do lugar.

Ao som das galopadas, o olhar de Aldus encontrou a imponente estátua de Erstius, o deus-sol. Os zardoianos representavam a divindade como um homem vestindo túnicas brancas e com uma cabeça dourada sem face. Seu braço esquerdo erguido e com o dedo indicador rígido para frente, fazendo menção à crença comum de que o sol sempre guiava os viajantes à direção correta. Mas não era como Aldus havia aprendido a imaginar o deus patrono de sua terra natal, o Deserto da Perdição. Para os homens das areias, Erstius era algo mais simples: o puro sol, uma bola de fogo que dava a vida a tudo, guiando-os pelos trajetos incertos do deserto.

A passagem pelo templo levou Aldus novamente àquele lugar onde nem mesmo a onisciência pode chegar.

Os cavalos seguiram seus ritmos vigorosos, passando pela zona mercantil de Theyley, um grande círculo de ruas e prédios que cerca o centro da cidade, quase como um labirinto. A noite já não era clara, sem lua, então não havia pessoas pela região dos mercados, o que facilitou o percurso dos oficiais.

No centro, várias construções se destacavam. O templo de Freyja, deusa da luz, era marcado por uma estátua imponente, representando a deusa matrona da capital como uma humana de feições suaves, vestido e cabelos longos, e olhar piedoso. Adentrando a região, passava-se pela Praça da Ordem, onde se encontrava o Palácio da Justiça, sede da vigilância de Theyley, e templo do admirável Tranislav, que expunha duas estátuas douradas de paladinos em posição de reverência com suas largas espadas, ajoelhados sobre uma perna, com a cabeça baixa, uma mão segurando a espada contra o chão, e a outra cerrada em punho no lado esquerdo do peito. A imagem trouxe de volta Aldus para onde possamos ouvir seus pensamentos.

Finalmente, a aglomeração voltou, quando o guarda e o inspetor chegaram ao bairro dos nobres, chamado oficialmente de Palacium (e pelos habitantes de Sangue Azul). Mas não era a mesma confusão da região oeste. As pessoas pareciam não poder perder a etiqueta enquanto burburinhavam, cochichando, em vez de gritar, olhando de longe, no lugar de tentar se infiltrar.

A vista de Aldus fez muitos darem meia-volta e saírem de perto do palacete de Adyl. O inspetor não era um paladino, tampouco um desses grandes cavaleiros das histórias. Usava uma armadura de placas marrom, portando o escudo com o brasão da guarda nas costas, a espada curta abainhada à direita da cintura, e uma balestra entre o escudo e a armadura. Porém, seu rosto duro era conhecido, e impunha respeito entre os habitantes.

O Inspetor da Guarda Real era um posto peculiar. Exigia rigoroso treinamento em combate, o mesmo para os paladinos; porém, não havia momentos dedicados à fé ou à magia. Não, o que complementava a preparação dos inspetores era uma vasta formação acadêmica. Era um verdadeiro mistério o que era ensinado aos inspetores. Não era permitida a divulgação de informações, devido aos riscos de ladrões e assassinos ficarem mais passos a frente dos responsáveis pelas investigações dos crimes na capital do reino. Por isso Aldus era respeitado: um homem imponente fisicamente, e com um intelecto misterioso. Duplo perigo.

Após descer de sua montaria, Aldus adentrou a propriedade de Adyl, e fez um gesto mínimo para o guarda mensageiro deixa-lo a sós.

- Alcançarei você em breve. - disse, olhando firme para o guarda.

 

A propriedade da família Wolfengar sempre chamou a atenção de Aldus. O palacete ao centro não possuía o mesmo perfil das outras construções na região. Os telhados abobadados lembravam o povo de Kushistan, conhecidos pela sua preferência às formas arredondadas. Algo a ver com perfeição matemática, se não lembrava errado...

Ao redor do palacete, um jardim primoroso exibia os resultados esperados da temporada de chuvas que se encerrara há poucos dias. Aldus lançou olhar para os lados, somente para registrar como a escuridão do lugar era conveniente há uma fuga. Ao subir os olhos, notou várias janelas com cortinas fechadas, exceto duas. "A janela central deve levar aos aposentos onde a família de Adyl estava reunida. A outra deve ser do quarto onde ocorreu o crime... fuga à esquerda do jardim do palacete? Digno de nota. É preciso verificar o telhado; talvez alcançar outra propriedade pelo alto fosse mais simples que sair da propriedade dos Wolfengar sem chamar a atenção dos guardas..."

Enquanto caminhara até o acesso principal do palacete, o inspetor deu mais uma olhadela ao seu redor. Os dois guardas postados à porta permaneceram imóveis, como peças de estatuário.

Aldus percorreu rapidamente a primeira antesala sem dar atenção aos apavorados membros da família Wolfengar, que consolavam uns aos outros na sala de reuniões localizada à direita da escadaria principal. Talvez alguém tenha visto a armadura marrom passar rapidamente para o andar superior, mas ninguém se deu ao trabalho de seguir o inspetor.

Embora fosse uma autoridade relevante na hierarqua da Guarda Real de Theyley, sua chegada a um ambiente repleto de guardas não implicava em tantos protocolos quanto a de Lorde Pomérion. No fundo, Aldus achava isso algo reconfortante, protocolos e etiquetas lhe tiravam facilmente o bom-humor. "Nenhum adorno fora do lugar no corredor, todas as lamparinas acesas, portas dos demais cômodos fechados. Se toda a família estava no andar de baixo em festa, era muito simples invadir esse piso e matar Adyl...". À frente do cômodo onde ocorrera o crime, a figura imponente de Pomérion assumiu um ar fraterno ao avistar o semblante pensativo de Aldus. Ele reconhecia aquela forma de olhar para todo canto e lugar nenhum ao mesmo tempo.

- Finalmente você chegou, velho amigo - Pomérion fez uma leve mesura ao receber o inspetor. - Desculpe-me por lhe tirar da companhia de Helena nesta noite. Imagino que entenda a gravidade da situação.

- Não problema, mestre - Aldus fez uma reverência simples e respeitosa ao Paladino-Mor. - Helena e eu já estamos habituados à natureza deste trabalho. Só tive o incômodo de tornar Chap em babá por uma noite.

- O velho Chap...ainda bebe como se não houvesse amanhã? Pomérion teve de disfarçar a leve zombaria em seu tom de voz. A resposta de Aldus se resumiu em um aceno positivo. - Perdoe-me, inspetor Golden, deseja que repasse os eventos ocorridos?

- Acredito não ser necessário, mestre. Seu mensageiro me informou o pouco que se sabe. Durante a terceira dança do baile dos Wolfengar, Sofia, neta de Adyl, subiu a esses aposentos à procura do avô, desaparecido da festa antes mesmo da primeira dança. Ela encontrou o corpo jogado sob o tapete e entrou em desespero, chamando lady Bomen, quarta esposa de Adyl, que notificou a guarda, trazendo-nos aqui.

- Eu esperava que o mensageiro fizesse uma descrição prévia da cena do crime - comentou o Paladino-Mor, assumindo uma feição mais severa e buscando o guarda com o olhar.

Aldus ergueu a mão sugerindo que o lorde esperasse. - Ele bem tentou, mestre, mas preferi esperar para observar a cena com meus próprios olhos.

- Hum, você realmente mantém seus velhos hábitos, inspetor. Por favor, não quero mais lhe tomar tempo. O Fisicaturista-Mor já foi notificado pela Guarda e aguarda para fazer os exames finais no corpo e enviá-lo ao Sumo-Sacerdote de Freyja, dando início ao preparativos do velório. - Pomérion falou já abrindo a porta do escritório. - Garanti que ninguém entrasse aqui desde a minha chegada no palacete.

- Está ótimo - retrucou Aldus - Peça para o Fisicaturista aguardar minha saída do escritório, caso chegue logo. Preciso de tempo. - Uma nova mesura, desta vez mais curta, foi seguida pela batida suave da porta fechada pelo inspetor. Era hora de trabalhar.

 

Ao se virar para o escritório, Aldus contemplou brevemente a cena quase lúdica a sua frente. A luz derramada pelo luar nem de longe sugeria uma cena de crime. De algum pequeno acidente, na melhor das hipóteses, devido à cadeira bruscamente afastada da mesa. O inspetor tirou de um compartimento da armadura uma pequena esfera de vidro, rodeada por aros de metais e pelo o que parecia um dispositivo. Com um clique, uma luz branca tomou conta o escritório, e o corpo de Adyl Wolfengar saltou aos olhos do inspetor Golden.

"Imaginava o velho Wolfengar maior em estatura, e menor em largura. Uma flecha? Não faz sentido... Por que alguém dispararia uma flecha dentro de um cômodo, se poderia perfeitamente golpeá-lo com uma adaga, ou mesmo uma espada curta? Adyl não oferecia resistência a um assassino treinado. Por outro lado, a arma praticamente descarta um crime cometido por alguém sem treinamento. Não...esta flecha não veio de dentro do palacete."

Ao lançar olhar mais detido à arma do crime, Aldus notou a pluma negra na parte traseira da flecha, e parou por longos minutos, encarando-a, retornando à expressão vazia, impassível, e colocando a mente a distâncias inalcançáveis. Quem o visse naquele momento poderia jurar que caíra em algum feitiço das medusas, virando uma estátua; ou mesmo que algum demônio roubara sua alma e ele virara uma casca. Não há como explicar de outra forma a expressão em sua face. Na realidade, o rosto de Aldus era de uma dureza surpreendente...certamente seria um ator de teatro fracassado...

Uma batida firme, mas cerimonial, à porta trouxe o inspetor de volta à cena, como se acordado de um sono profundo.

- Inspetor Golden, desculpe-me incomodar, mas o Mestre Sven está à espera para avaliar o corpo do barão Wolfengar. - A voz era respeitosa e formal, algum guarda estava fazendo seu serviço - Senhor?

- Desculpe-me... - respondeu Golden, um pouco confuso - ainda precisarei de mais alguns minutos para terminar minha observação no quarto. Peça aos criados do palacete para auxiliarem o Fisicaturista Sven durante sua espera, sim? - Gradativamente o inspetor retomou seu tom firme na voz.

- Sim, senhor. - respostas curtas eram muito eficientes em Theyley.

Novamente, Aldus estava a sós com seus pensamentos e o corpo de Adyl Wolfengar no escritório. Parecia ter colocado a mente no lugar

"A pluma negra...o que isso faz aqui? Não faz sentido...ou faz...". Aldus caminhou cuidadosamente à estante de livros com capas iguais, e começou a retirar alguns. "Livros de contabilidade...Adyl era o responsável pelo tesouro do reinado. Se alguém quisesse simples acesso aos livros, compraria sua lealdade, ameaçaria sua família, ou o torturaria. Morto, ele não pode revelar segredos ou desviar recursos para ninguém. Mas há uma pergunta primordial ainda não respondida. Se o disparo não veio de dentro do palacete, de onde, então?".

Aldus caminhou até a janela aberta do quarto, e fitou três prédios a sua frente. O Sangue Azul era um bairro onde a pompa não era simples gesto de opulência, mas também parte da etiqueta e do jogo social e nobiliárquico do reinado. Os sujeitos ocupando posições mais próximas ao rei tinham o privilégio (e a obrigação) de construir palacetes mais altos e espaçosos, mas nunca com mais da metade dos cômodos do palácio. Não importa quão nobre alguém fosse, estava sempre abaixo da metade da glória e honra do rei. Adyl certamente ocupava uma posição invejável. Tesoureiro real? Isso lhe deixava a cargo das riquezas não somente de Theyley, mas de toda Zardoia. Essa responsabilidade rendia ao barão um palacete superior a vários na região, mas seus vizinhos também não eram de menos. Os palacetes pertenciam ao Conselheiro-Mor, braço direito do rei; à Fisicaturista Real, responsável pela saúde da família Kavendish; e a Florian Certton, uma figura misteriosa na nobiliarquia local.

"O palacete do conselheiro Avenucci possui uma boa vista para este palacete, mas é mais alto, forçando o arqueiro a disparar a flecha de dentro de uma residência cheia de guardas. Ousado, mas não impossível. A casa de Meneia, a fisicaturista, está descartada, pois é mais baixa que esta casa, e o disparo fez uma curva descendente para acertar o barão. O palacete de Certton é mais óbvio, sua altura permite um disparo do telhado, sem contato com nenhum morador." O inspetor voltou a observar atentamente o corpo do falecido. "O ângulo de entrada da flecha pode ser traiçoeiro, o vento da estação pode desviá-lo perfeitamente, então não posso excluir nenhum lugar pela curva de trajetória". O pensamento geométrico de Aldus era típico de um acadêmico; falado espantaria qualquer guarda.

"Mas o que você fazia aqui, Adyl? Por que estava com a janela aberta? Tentava receber a luz do luar? Assuntos secretos são tratados a cortinas fechadas. Mas somente esse candeeiro não daria conta do cômodo." Aldus afastou-se do corpo e foi em direção à mesa. Chamava atenção quanta riqueza em uma mesa. A pena mergulhada no tinteiro era de grifo, e a orbe azul sobre o suporte de ouro valia mais do que sua casa, sem dúvidas. As gavetas continham mais registros de contabilidade real. A escrita ea codificada, mais uma evidência que afastava o assassinato de interesses com as informações que Adyl poderia passar. Não havia tempo para um estudo dos livros. Aldus observou o chão, e viu uma leva marca da mesa movida. "Empurrar a mesa para mover a cadeira, deslocando um pedaço de mogno maciço...esse não é um movimento de alguém calmo...".

Aldus voltou-se ao corpo e, no percurso curto, olhou para a pequena composição mesa-com-cadeiras ao canto e notou que estava irretocada; dificilmente fazia parte da cena do crime. Agachou-se frente ao corpo, e, cuidadosamente, revistou os bolsos de Adyl, retirando uma bolsa carregada - moedas -, uma adaga com a lâmina ridiculamente cega, uma caderneta com mais códigos similares aos dos livros de contabilidade e, amassada num bolso oculto na capa azul escura, um bilhete escrito a letras apressadas.

Perdão, Adyl

Não há tempo para códigos. Tenho fonte confiável de que corremos perigo. É hora de acabarmos com isso. Procure o Refúgio. Rápido.

Com atenção,

Hugnar

Aldus guardou o bilhete em seu bolso e olhou para os lados por dois segundos. Virou-se abruptamente e abriu as portas do escritório, deparando com o Fisicaturista-Mor e um guarda, que se preparavam para falar...

- Não tenho tempo para cerimônias. O corpo é seu. Saiam do caminho. - O rosto de Sven, um velho com traços altamente eruditos em seu rosto e porte imponente, assumiu uma feição de espanto grandiosa.

- Senhor Inspetor Aldus Golden, exijo que me trate com o...

Aldus passou rispidamente entre os dois, deixando o fisicaturista falando sozinho. Andou com passos firmes, quase correndo, em direção à saída. No lado de fora, deparou-se com Lorde Pomérion. Sua presença não era contornável.

- Para onde vai com essa pressa, Aldus? O que descobriu na cena do crime?

- Perdoe-me, mestre - Aldus fez uma mesura rápida - mas não posso conversar agora.

Pomérion ergueu a mão, abandonando o tom brando de antes. - Inspetor Golden, não preciso de lhe advertir quanto aos protocolos e suas obrigações para com o Paladino-Mor da Guarda de Theyley. Por Tranislav, sou seu mestre - a voz começou a subir - exijo o devido respeito.

- Você tem razão, mestre - Aldus não mudara seu tom duro, e seu olhar amarelo ia profundo ao encontro de Pomérion - mas há questões mais urgentes. Preciso tentar evitar outro assassinato, ou encontrar mais uma cena de crime.

O Paladino-Mor encarou o inspetor consternado, e deu um passo à esquerda, abrindo caminho para Golden.

- Vá. Agora. - Novamente, seu sussurro parecia um trovão.

Desta vez, Aldus literalmente pôs-se a correr rumo ao seu cavalo.

Continua....


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